Descoberto novo poder nutricional da planta de guaraná

Guaranazeiro possui microrganismos com potencial biotecnológico para a agricultura e a saúde humana, segundo pesquisadores brasileiros que utilizam ferramentas da biologia molecular

O guaraná é considerado uma superfruta por trazer vantagens nutricionais ao corpo humano, graças a seu poder energético, estimulante e fortificante. Pesquisas feitas em 2011, pela Universidade Federal de Santa Maria (RS) e publicadas pela Phytotherapy Research, mostram que a ingestão habitual de guaraná pode reduzir desordens metabólicas, incluindo hipertensão e obesidade.

É o que divulgou a revista A Lavoura na matéria “Guaraná: energia em forma de fruta” (páginas 42 a 45), que faz parte da edição impressa nº 715, dedicada especialmente às superfrutas. A publicação está disponível, gratuitamente, em nossa Biblioteca online.

Agora, pesquisadores brasileiros revelam que a planta de guaraná possui microrganismos com potencial biotecnológico para a agricultura e a saúde humana. A descoberta ocorreu graças a ferramentas da biologia molecular, que permitiram desvendar, cientificamente, um “micromundo” com milhares de endofíticos – organismos inofensivos à planta – no microbioma dessa espécie.

Realizados pela Unidade Amazônia Ocidental (AM) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em parceria com três universidades brasileiras, esses estudos levaram à prospecção de microrganismos e moléculas de interesse para a área de saúde e agrícola.

Micromundo

De acordo com a estatal, conhecer o “micromundo” dos endofíticos por meio da ciência abre possibilidades para entender os mecanismos associados à planta hospedeira e as possibilidades de aplicação desses microrganismos em outras plantas diferentes daquelas onde foram encontradas.

Os experimentos ocorreram por meio do projeto de pesquisa “Microoma – Microbiomas amazônicos: uma abordagem para sustentabilidade e prospecção de bioativos”, desenvolvido em parceria pela Embrapa Amazônia Ocidental, Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e Universidade Federal de Viçosa (UFV).

O trabalho contou com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com coordenação geral da professora Jania Lília Bentes, da Ufam.

Ciência abre possibilidades para entender os mecanismos associados à planta hospedeira do guaraná. Foto: Síglia Souza/Divulgação Embrapa

Projeto Microoma

Ao estudar o guaranazeiro, o projeto Microoma focou na detecção de microrganismos cultiváveis e não cultiváveis, buscando identificar as espécies com potencial biotecnológico.

Segundo a Embrapa, os microrganismos selecionados, que não causam doença ao guaranazeiro, foram apontados como endofíticos, ou seja, são capazes de conviver no interior da planta, colonizando seus tecidos sem causar danos, podendo, inclusive, exercer funções que auxiliam a planta.

As plantas de guaranazeiro utilizadas na pesquisa do microbioma foram coletadas no Amazonas, nos campos experimentais da Embrapa nos municípios de Manaus e Maués, onde se mantém o Banco Ativo de Germoplasma (BAG), que tem como principal finalidade a conservação da diversidade genética do guaranazeiro para uso em pesquisas.

Projeto Microoma foca na detecção de microrganismos cultiváveis e não cultiváveis, buscando identificar espécies com potencial biotecnológico. Foto: Síglia Souza/Divulgação Embrapa

Técnicas moleculares

A partir desse material, o Laboratório de Biotecnologia e Ecologia Microbiana da UFMT isolou centenas de bactérias e fungos cultiváveis, que foram posteriormente identificados com o auxilio de técnicas moleculares no Laboratório de Biologia Molecular da Embrapa Amazônia Ocidental.

Depois da triagem e identificação desses microrganismos, foram selecionadas várias bactérias e fungos presentes no microbioma do guaranazeiro, com possibilidade de futura transformação em produtos.

“Foram encontrados vários microrganismos com potencial biotecnológico, seja para atividade antimicrobiana e anticâncer”, relata o biólogo Gilvan Ferreira da Silva, que coordena as ações do projeto de pesquisa Microoma, na Embrapa Amazônia Ocidental.

Silva é mestre em Genética e Melhoramento de Plantas, doutor em Microbiologia (Genética Molecular e de Microrganismos) e pós-doutor em Genômica Funcional.

“Foram encontrados vários microrganismos com potencial biotecnológico, seja para atividade antimicrobiana e anticâncer”, relata o biólogo Gilvan Ferreira da Silva. Foto: Síglia Souza/Divulgação Embrapa

Outras pesquisas

Conforme a Embrapa, a partir desses estudos estão sendo desenvolvidas outras pesquisas sobre a possível aplicação desses microrganismos, como por exemplo, no controle de patógenos em culturas agrícolas de interesse.

Em uma segunda fase do trabalho foi realizado o metagenoma bacteriano, quando foi descoberta uma grande diversidade microbiana associada à planta do guaranazeiro. Os resultados foram publicados na edição de 14 de novembro no World Journal of Microbiology and Biotechnology.

“Foram identificados mais de 19 filos de bactéria, 32 classes, 79 ordens, 114 famílias, 174 gêneros e o equivalente a 1.520 espécies de bactérias morando no guaranazeiro, vivendo harmonicamente com a planta”, relata o pesquisador.

Segundo o biólogo, os endofíticos vivem em simbiose com a planta hospedeira, exercendo algumas funções em seu desenvolvimento, como fornecimento de nutrientes ou síntese de hormônios. Há também indícios de sua possível ação no controle de agentes de doenças nas plantas.

Agricultura

Por causa dessas características, esses microrganismos são vistos como fontes para o desenvolvimento de novos produtos biotecnológicos com aplicação na agricultura, seja como promotores de crescimento de plantas, seja como alternativa para substituir ou reduzir o uso de agrotóxicos.

Para se chegar a um produto final, entretanto, são necessárias várias etapas de pesquisa e bioensaios.

Guaranazeiro é uma planta nativa da Amazônia e de seus frutos processados são feitos o pó de guaraná, popularmente conhecido por ser estimulante. Foto: Divulgação Idesam

Novas cultivares

O guaranazeiro (Paullinia cupana var. sorbilis) é uma planta nativa da Amazônia e de seus frutos processados são feitos o pó de guaraná, popularmente conhecido por ser estimulante. Estudos apontam que o guaraná é rico em cafeína e apresenta propriedades antioxidantes.

A Embrapa Amazônia Ocidental mantém o único banco de germoplasma e programa de melhoramento da espécie no mundo. Vinte cultivares produtivas e resistentes às principais doenças dessa planta foram lançadas ao longo dos últimos 40 anos.

Com início em 2014, o projeto Microoma foi direcionado para a caracterização do microbioma de duas espécies nativas da região amazônica e que são culturas importantes do ponto de vista econômico.

Pelo mesmo projeto, além do guaranazeiro, a seringueira (Hevea brasiliensis) também foi contemplada no projeto. Nas duas plantas foram identificadas várias espécies novas de microrganismos.

Fonte de bioprodutos

Professor da UFMT, Marcos Antônio Soares,coordena grupo de pesquisadores que estudou o novo potencial do guaranazeiro. Foto: Síglia Souza/Divulgação Embrapa

As pesquisas levaram à formação de um banco de microrganismos depositado no Laboratório de Biotecnologia e Ecologia Microbiana, do Instituto de Biociências da UFMT. Contando com fungos e bactérias, esse banco vem sendo utilizado como fonte de prospecção para outras pesquisas.

Em um dos trabalhos do grupo de pesquisa em Biotecnologia e Ecologia Microbiana da UFMT, a professora Rhavena Graziela Liotti conseguiu obter linhagens de microrganismos endofíticos de guaraná, com forte potencial biotecnológico para controlar patógenos pré-colheita e pós-colheita em pimentão.

Eles também são capazes de promover o crescimento dessas plantas, assim como relata o professor da UFMT Marcos Antônio Soares, coordenador desse grupo.

Combate a doenças das plantas

No estudo foi verificado o potencial de um desses microrganismos no combate a um fungo do gênero Colletotrichum, causador da antracnose no pimentão. O microrganismo também protegeu a planta do Fusarium, que ataca as raízes e reduz o crescimento da planta.

As plantas de pimentão, em que foi inoculado o microrganismo do guaranazeiro, cresceram mais e com mais biomassa, segundo Soares.

Saúde humana

Guaranazeiro é uma reserva natural de microrganismos importantes para a indústria farmacêutica. Foto: Síglia Souza/Divulgação Embrapa

Ele afirma que, em outro trabalho desenvolvido a partir do banco de microrganismos endofíticos do guaranazeiro, o estudante Fábio Azevedo conseguiu obter linhagens de fungo que produzem moléculas de interesse farmacêutico com atividades antimicrobiana e anticancerígena.

Na avaliação de um desses compostos foi verificada sua ação para matar células tumorais na condição in vitro.  “O guaranazeiro é uma reserva natural de microrganismos importantes para a indústria farmacêutica”, constata o professor.

Pioneirismo

De acordo com a Embrapa, a biologia molecular é fundamental para avaliar a biodiversidade de microrganismos endofíticos associados a uma planta.

Em um primeiro estudo – realizado em 2018 dentro do projeto Microoma – havia sido identificada, por meio de técnica de cultivo in vitro, uma comunidade bacteriana com 95 espécies de bactérias.

Conforme a estatal, quando foi feita a análise por meio de técnicas de biologia molecular – no caso, a metagenômica –, o resultado multiplicou essa quantidade por mais de dez.

Ainda foram encontradas mais de 1,5 mil espécies de bactérias convivendo no guaraná. Nesse último caso, não foi necessário isolar o organismo em meio de cultura para identificação.

Com a metagenômica, o DNA do microrganismo é extraído e sequenciado, permitindo identificar um número maior de microrganismos, considerando que nem todas as espécies conseguem sobreviver fora das condições naturais e crescer em meio de cultura artificial.

“O que se consegue cultivar em laboratório é um percentual muito pequeno daquilo que realmente existe ali”, explica o biólogo Gilvan Silva.

Metagenoma

Por meio do projeto Microoma, foi realizado pela primeira vez o metagenoma de todas as partes da planta do guaranazeiro, incluindo raízes, caule, folhas e frutos.

Os pesquisadores envolvidos nesse trabalho relatam que já existiam análises de partes, mas ainda não havia sido feito esse estudo com o microbioma da planta inteira. “A riqueza de espécies é bastante significativa, surpreende”, diz Silva.